O Estado da Burocracia
Cá vai um belo exemplo da burocracia entranhada na cultura portuguesa em geral, e na Administração Pública em particular. Burocracia essa que, pela sua lentidão de processos, visão unidireccional e preguiça mental, come a um ritmo avassalador dinheiro contributivo de todos nós (ou pelo menos daqueles que pagam impostos).
Todas as semanas, o departamento que coordeno recebe coimas do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS) por entrega fora do prazo de boletins de inscrição de novos colaboradores na Segurança Social. Dezenas delas no valor unitário de 74,82 €. As várias empresas do Grupo admitem, em média, 400 colaboradores por mês, sendo que desses talvez uns 50 ainda sem número de beneficiário.
A razão de ser das coimas é simples. Legalmente, a comunicação tem de ser feita até ao último dia do mês n+1 da data de admissão. Exemplificando, admitidos em Março têm obrigatoriamente de ser comunicados até 30 de Abril. No último dia do mês, pela hora de almoço, assino cartas para praticamente todos os Centros Regionais de Segurança Social (CRSS) do país, onde anexos estão todos os Boletins de Identificação referentes às admissões do distrito em causa. A manhã desse dia está, programadamente, reservada pelos elementos da equipa para essa tarefa. Nesse mesmo dia é, ainda, feito o envio via CTT, conforme carimbo no Registo. O CRSS recebe, pois, no 1º ou 2º dia útil do mês n+2, conforme assinatura do Aviso de Recepção.
Vai daí, começa o ciclo:
1- O CRSS de Bragança comunica ao IGFSS do Porto a entrega fora de prazo, anexando relatório descritivo e pormenorizado (!!!);
2 - O IGFSS envia uma coima por cada Boletim alegadamente em atraso: «O arguido entregou em 02.04.2005 quando devia ter entregue até 31.03.2005». Primeiro, acho uma piada a Segurança Social multar quem quer que seja por, alegadamente, 1 ou 2 dias de atraso. Mas rigor é rigor e um dia aplicar-se-à também às suas próprias situações de atraso;
3 - Eu respondo, então, com uma norma jurídica criada por/para/pela Segurança Social, onde explicitamente se refere que a data de referência é a data de envio e não da recepção, anexando os devidos comprovativos dos CTT (já tenho um modelo criado);
4 - O Departamento Jurídico do IGFSS absolve-nos das coimas;
5 - No mês seguinte, recomeça o ciclo.
E andamos nisto! Este processo é repetido de Bragança a Faro, passando pelas Regiões Autónomas, quase sem excepção. Não fosse o facto de o total mensal destas coimas representar qualquer coisa como mais de 3000 € (três mil euros), eu até era gajo para alinhar no esquema e deixar andar. Sempre contribuía para contratarem mais 2 cérebros. Sei também que, se tivesse a iniciativa de expor a situação ao IGFSS, a solução proposta seria em antecipar o envio num dia. Mas não o faço por duas razões: primeiro, por teimosia. Segundo, porque os 10 elementos da equipa têm de ter prontas, até ao penúltimo dia útil do mês, as transferências bancárias dos vencimentos de 5000 colaboradores. E não vou contratar um “mangas-de-alpaca” para lidar unicamente com a Segurança Social. Esse estilo, onde não é preciso fazer contas ao orçamento, ou pelo menos respeitá-lo, porque o Zé-povinho paga, não é o do sector privado.
Bastava uma comunicação do IGFSS, a merda de um fax, a todos os CRSS dizendo: «Meus caros colegas dos Departamentos de Inscrição de Novos Contribuintes, parem de multar as empresas por entregas fora de prazo, sem antes olharem para a data do envio». E o ciclo parava. Os CRSS teriam menos trabalho, o IGFSS teria menos trabalho, o DJ do IGFSS teria menos trabalho, o meu departamento teria menos trabalho e eu, pessoalmente, teria também menos trabalho, o que até me dava um certo jeito.
Talvez seja mesmo isso. Como colaborador de um grupo económico privado, realmente não me faz faltinha nenhuma, mas será que alguma malta do Estado necessita de trabalho solto, confusão e papelada para justificar o lugar?
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